Pai Maneco |
De tempos em tempos me bate uma vontade louca de comer quindim. E tem época: sempre entre setembro e outubro. Sei lá porquê. Talvez seja a alegria em ver o sol de novo, nos dias de primavera. De qualquer forma, os quindins me remetem a alegria de estar vivo, e inevitavelmente, me lembram Oxum.Quem me alertou para este fato repetitivo foi a amiga Ìyálorisá Elaine Ti Òsun, porque todo ano tenho falado pra ela, na mesma época: preciso de quindim! Ela lá no Rio de Janeiro e eu aqui, no meio do mato em Colombo. Não resolve muita coisa ,mas dissemino a vontade e de repente tá todo mundo consumindo o tal doce.
Pai Maneco é um protetor das doceiras, porque diz que elas trazem alegria. Hoje, portanto, farei uma homenagem a ele, que sempre adoçou minha vida com um sorriso, falando delas.
A origem dos doces é incerta. Acredita-se que os primeiros doces já eram oferecidos como oferendas aos deuses na época de Ramsés III, feitos de farinha de trigo, mel, frutas e especiarias, conforme hieroglifos encontrado em sua tumba. Aqui no Brasil, berço da Umbanda, o sociólogo Gilberto Freire em uma citação no livro "Casa Grande e Senzala" diz que os meninos do norte/nordeste do Brasil têm a fala mais doce do mundo, porque as amas negras adoçaram suas bocas e assim tiraram os érres e ésses, porque com seus quitutes conseguiram fazer com que as palavras se desmanchassem na boca.
Muitos acreditam que doces como quindim, bom-bocados, pudim, papo-de-anjo e manjar são doces brasileiros, mas comprovadamente têm origem portuguesa, oriundos dos conventos, com as sobras das gemas dos ovos, uma vez que as claras eram usadas para engomar os hábitos das freiras.No Brasil, as primeiras esquadras portuguesas já traziam doces para os índios de Porto Seguro, ofertados como presentes e na época colonial, a nobreza saboreava-se com cajuadas e goiabadas das cozinheiras negras escravas. Estas cozinheiras foram as grandes responsáveis pelas novas cozinhas regionais que nasciam com criações como bananas assadas com canela, mel de engenho com farinha de mandioca ou macaxeira, arroz-doce com leite-de-coco, tapioca, pamonha, beiju, cuscuz, cocada, pé-de-moleque com castanhas de caju e canjica.
Rui Barbosa, um grande intelectual, se derretia por colheradas de doce de batata e mais recentemente, João Goulart e Jorge Amado, verdadeiros adoradores do doce de coco. Aqui em casa, o lindinho sempre diz que comida é religião, e ela é de fato. Mantém nosso corpo e equilibra nossa alma. Ao fazer ou saborear um doce alguém pode pensar em coisas ruins? Não acredito nisto. Ao morder um quindim você fica tão intensamente inundado pelo sabor, que a consciência da vida aflora e a delícia do momento te fazem esquecer qualquer coisa, nem que seja por segundos.
Após o término da escravidão, muitas negras tiveram que lavar,engomar, cuidar de doentes e crianças, colher e vender ervas medicinais, fazer doces e vendê-los. Eram tempos difíceis, mas todas estas funções fizeram dos espíritos que hoje trabalham na Umbanda, mães acolhedoras e disseminadoras da alegria por onde passem. A imagem que pode vir à mente são os tabuleiros delas cheios de doces lá do nordeste, mas elas disseminaram a alegria pelo Brasil todo.
Há um estudo chamado "Nós Cultuamos todas as Doçuras" que é um desdobramento do Inventário Nacional de Referências Culturais - produção de doces tradicionais pelotenses, pesquisa que segue metodologia do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), visando identificar e reconhecer a tradição doceira pela qual Pelotas, situada no Rio Grande do Sul, é nacionalmente conhecida. A pesquisa podia se ater aos doces de origem européia, mas no processo investigativo, ao consultarem uma mãe de santo da Umbanda na região ela mencionou uma história: " Conta a lenda que uma escrava desejava muito engravidar e não conseguia, então prometeu a Oxum que lhe daria uma quantia de cem quindins caso tivesse um filho.."
Em Pelotas os amalás, por uma questão cultural, têm na maioria das vezes muitos doces. Muitas doceiras da região são fornecedoras deste "material ritualístico" .
Em Pelotas há terreiros que além da entrega feita aos Orixás, a comunidade se reúne para compartilhar o axé proveniente destes doces. Como curiosidade , além dos conhecidos quindins para Oxum, o açúcar cristal é considerado lá elemento de Yansã, a senhora das mudanças, então é comum você encontrar entregas com figos cristalizados por exemplo, que aliam a força desta orixá com Ossanha, que é o orixá das ervas (que na Umbanda que pratico não é cultuado). Fora os doces cristalizados são encontrados também os de compota, os camafeus, ninhos, bem casados enfim, um verdadeiro transporte da área cultural da cidade para o campo sagrado dos orixás, na busca por por uma vida mais doce. E uma das coisas mais bonitas que já ouvi na religião foi a seguinte, lá do povo de Pelotas: " aqui cada reino "Orixá", tem uma doceira."
Tia Olímpia |
Aqui no Paraná ,mais precisamente em Tibagi, viveu uma ex-escrava a "Tia" Olímpia Novaes Taques, que foi considerada a primeira "assistente social" da cidade. Além de lavadeira, e "pau pra toda obra" , Tia Olímpia era excelente doceira e esta sua doçura da alma fez com que ajudasse muitos que necessitavam de sua ajuda. Com saia de algodão escura, franzida e longa, quase até os tornozelos, blusa de algodão estampado em cores claras de mangas compridas, a tia usava lenço claro na cabeça e calçava chinelos de couro, pois assim andava rápido pelas ruas de chão batido. Mesmo tendo dez filhos e uma vida de muito trabalho para sustentar todos, nunca deixou de ajudar ninguém, sempre com um sorriso no rosto.Ajuda aos jovens recém-formados que retornavam ou vinham de outras cidades a Tibagi para se iniciarem na profissão. Por seus cuidados passavam médicos, advogados, professores e juízes. Ia à casa das pessoas doentes e saía em busca de auxílio. Ela visitava outras pessoas, contava que fulano estava doente e que teria de levar a ele uma sopa. As pessoas não só lhe davam a sopa, como também procuravam visitar o doente mencionado. A doçura desta ex-escrava é mais que apenas um nome lembrado em uma rua, foi o alicerce de muitas famílias da região.
Tá certo que Steve Jobs foi um cara muito importante para a vida que levamos hoje, mas mais importante que ele, para o fundamento da nação brasileira, foram essas pretas-velhas que até hoje lançam seus olhares doces aos filhos de Umbanda, na esperança, creio eu, que com isto aflorem em seus filhos os sentimentos de
compaixão e humildade com o próximo.
- "Nós Cultuamos Todas as Doçuras" é um estudo realizado por Marília Floôr Kosby é mestranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) e membro da Equipe do Inventário Nacional de Referências Culturais referente à produção de doces tradicionais pelotenses. Flávia Maria Silva Rieth , doutora em Antropologia Social e professora da UFPEL, é coordenadora dessa Equipe, que também é composta por: Fábio Vergara Cerqueira, Maria Letícia Mazucchi Ferreira, Francisca Ferreira Michelon (consultora em imagem), Mario Osorio Magalhães (consultor em história) e Tiago Lemões da Silva.
Sem palavras!! Emocionada demais com a "doçura" deste texto!! Estou inebriada! Salve a força de todas as Tias Olímpias espalhadas por esse Brasil!! Te amoooooo, criaturaaaaaaa!!!
ResponderExcluirLindo texto de uma doçura ímpar!
ResponderExcluirÉ tanta doçura.... adorei !!
ResponderExcluirEste teu doce comentário me fez lembrar da minha velha e saudosa avó materna, dona Catarina. Como alemã, vinda para o Brasil fugitiva da Guerra, trouxe seus dotes culinários. Era da vovó Catarina o mais notável de todos os pratos de arroz-doce que eu já saboreei na vida. E isso só ocorreu na minha infância, em Ponta Grossa. Custaram algumas cáries dentárias, mas valeram a pena. Eu torcia para mamãe e papai viajarem para eu ficar com a vovó, que vinha com seus caldeirões de arroz-doce. Delícia que nunca mais provei, por mais que procure. Ninguém faz hoje o arroz-doce que vovó Catarina sabia fazer. Ficou na saudade o doce da doçura de vovó Catarina. Valeu o dia!
ResponderExcluirOsni Gomes
Além de aprender muito sobre os doces... um texto que remete à várias lembranças. Gostei muito!!!! Bjs
ResponderExcluirIvana
Fiquei até com vontade de comer um pouquinho de Quindim, mesmo não apreciando o exagero da quandidade de ovos no preparo, Andréa. Gostei, também, da articulação entre as ideias, resultado certamente de caprichosa reflexão de uma leitora atenta como é você.
ResponderExcluirReceba o meu abraço.
Também gosto muito de doces... qualquer um; de abobora, sagu,pave, cangica, chocolate; basta ser doce.
ResponderExcluirTem dias que parece que o organismo pede doce e lá vou eu procurar. Se encontrar ou não tiver, furo uma lata de Leite Moça e chupo até matar a vontade.
Você desvendou o segredo de "ser doce" : )
ResponderExcluirE conseguiu adoçar todo meu final de semana... lindo!!
ResponderExcluirOra Iêiê ô Mamãe Oxum...
Que Deus te abençoe e proteja, preservando pra nós, o privilégio da tua doce presença por milênios. Ter sua amizade é mesmo uma grande bênção. Te amooooooooooo!!
Adoçado meu fim de semana depois deste texto.
ResponderExcluirUm texto tão doce como este só poderia ser escrito por uma criatura doce e cheia de energia como você. Os doces vieram de longe para adoçarem nossa vida e nos manterem recheados de energia, assim como você fez ao escrever este texto; adoçou nossa alma e nos trouxe o recheio do conhecimento.
ResponderExcluirObrigada querida! Que Oxum continue adoçando sua vida e Iansã recheando-a de energias positivas!
Grande abraço, beijos fraterno!
Que delicia de texto.
ResponderExcluirSempre fantástico saber das raizes,maravilhas,lutas magias e belezas de tantas histórias.
Formiga que sou, visualizando cada doce enqto lia, estou com a boca cheia d'água!
Bjs
Teus textos sempre me adoçam a alma.
ResponderExcluirTenho uma admiração profunda pela sabedoria dos Pretos Velhos..